Entrevista com José Lima Júnior
07/11/2016
9:25 AM
/
Raphael Pozzi
/
Atualizado em 07/11/2016 9:25 am
A doação de órgãos ainda sofre preconceito no Brasil, de acordo com o cirurgião cardiovascular e coordenador da comissão de Remoção de Órgãos da Associação Brasileira de Transplantes (ABTO), José Lima Oliveira Júnior. O problema, segundo o especialista, é que o País discute pouco o assunto. Isso faz com que os mitos e as dúvidas sobre o tema preencham a mente dos familiares na hora de escolher entre a doação ou não dos órgãos do morto. Essa decisão, segundo o cirurgião, é exclusiva da família. “A pessoa pode ter deixado escrito que desejava ser um doador, mas os familiares são quem assinam os documentos”, comentou.
O especialista explicou que um doador pode salvar até oito vidas de pacientes que aguardam nas imensas filas pelo Brasil. Isso se forem aproveitados apenas os órgãos como coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas, córneas e intestino. Se o leque for ampliado e tecidos como ossos, pele, artérias, veias e tendões forem transplantados, a doação pode beneficiar até 70 pessoas. “É muita coisa”, disse Júnior.
Segundo o cirurgião, o sistema que vigora no Brasil é eficiente. “O País tem o maior programa público de transplantes do mundo. O sistema funciona, mas temos uma sobra de potenciais doadores. Poderíamos fazer melhor e muito mais do que hoje”.
Folha Metropolitana – Existe preconceito com a doação de órgãos no Brasil?
José Lima Oliveira Júnior – Eu acredito que exista um “interpreconceito”. O assunto doação de órgãos é cercado de muitas dúvidas e mitos. Se as pessoas tivessem consciência da importância desse ato, com certeza isso seria menor.
O que causa esse problema, na sua opinião?
Falta de informação, de debate. Existem estados em que a recusa gira em torno de 20 a 25%, um número bem próximo dos países desenvolvidos. Isso, no entanto, não acontece no Brasil todo. Os estados do Norte e do Nordeste, por exemplo, têm índice de recusa que chega a 95%. Um dos maiores medos das famílias é se aqueles órgãos serão bem tratados ou vendidos, por exemplo. Existe uma série de receios comuns.
O que diz a legislação sobre a doação?
Basicamente, ela apenas determina que haja anuência da família, mesmo que aquela pessoa tenha deixado registrado que gostaria de ser um doador, a família tem que concordar. No Brasil, a gente trabalha com a doação consentida, e não a presumida. A decisão final é da família sempre, quem autoriza e assina os documentos são os familiares do morto.
E qual é a importância da doação na sociedade?
Veja, um doador pode salvar, potencialmente, a vida de oito pessoas. São aproveitados o coração, os pulmões, rins, fígado, pâncreas, córneas e intestino. Além disso tudo, podem-se doar também tecidos, como ossos, pele, artérias, veias e tendões. Se você ampliar esse leque, podemos ajudar setenta pessoas com apenas um doador. É muita coisa.
Como a família é abordada quando a equipe vê um potencial doador naquele paciente?
O médico diz que é possível que aquela pessoa com morte encefálica pode ajudar esses outros pacientes. A gente joga num software as características para ver se existem pessoas disponíveis e compatíveis. Isso segue uma fila. Uma central estadual recebe essa informação, cruza os dados e diz: “Olha, fulano precisa de um coração desse tipo e está no Instituto do Coração (Incor)”. A partir daí, a instituição é notificada e eles têm uma hora para responder se aceitam ou não. Se a resposta for afirmativa, a gente chama o serviço de apoio, os órgãos são captados e seguem para os hospitais correspondentes.
Existe algum intervalo de tempo “ideal” para que cada órgão não seja prejudicado nesse caminho?
Sim. O coração é o que menos tolera. O transporte tem que ser feito em até quatro horas, por exemplo.
E o recebedor tem risco de ter rejeição?
Pode acontecer, claro. São dois ou três meses de risco. Se tiver alguma infecção, ela também se manifesta nesse tempo. Em geral, no entanto, eles ganham muita qualidade de vida.
Se algum órgão estiver prejudicado, ele ainda assim pode ser doado?
Não, apenas os saudáveis vão ser transplantados.
Há algum custo para realizar os procedimentos?
Não, o doador e a sua família não têm custo e nem ganho com isso. Tudo é realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A doação deixa o corpo deformado?
Não. Vamos pensar nas córneas. Ela fica com o aspecto idêntico ao de antes, porque são colocadas próteses no local. Não há diferença alguma. É um desperdício pensar nisso, deixar de ajudar pessoas que estão morrendo no dia-a-dia, por conta de uma questão como essa.
Idosos, ou pessoas que já tiveram alguma doença, podem doar?
Sim, todas as pessoas são consideradas potenciais doadoras. Independe da idade ou do histórico médico. Claro que são realizados exames clínicos, de imagem e laboratoriais, para avaliar se está tudo certo.
O que falta para que a doação seja mais aceita na sociedade brasileira?
A maioria das pessoas precisa ainda ser informada. O transplante e a doação sempre falam de morte e de vida. As pessoas têm que saber que a fila é enorme para se receber um órgão. Mesmo assim, o Brasil tem o maior programa público de transplantes do mundo. É o segundo país em transplantes realizados, muito à frente de França, Austrália, Canadá. O sistema funciona, temos uma sobra de potenciais doadores. Poderíamos fazer muito melhor, muito mais. Precisamos discutir esse assunto. Isso tem que participar do Ensino Fundamental, nas matérias de ciências. Precisamos de campanhas que durem o ano todo. Eu acredito que isso é o começo para que esse assunto tão importante seja mais conhecido.