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Lembranças da bomba de Hiroshima
04/08/2017
9:30 AM
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Alfredo Henrique
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Atualizado em 08/08/2017 9:50 am
Neste domingo, 6, completam 72 anos em que o governo do presidente estadunidense Henry Truman cometeu o maior atentado terrorista da história: jogou uma bomba atômica, ironicamente batizada de little boy (o pequeno garoto, em tradução literal) sobre a cidade de Hiroshima, no Japão.
Tudo aconteceu em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O Japão compunha o chamado “Eixo”, apoiando a Alemanha nazista – a qual havia sido derrotada em maio. Ou seja, pouco mais de dois meses antes do lançamento da ogiva nuclear sobre a cidade japonesa. O número de mortos é estimado em 140 mil, contando os que faleceram por causa da explosão e dos que, por causa da radiação, morreram posteriormente.
Este dia ainda habita a mente de sobreviventes do atentado. O MetrôNews conversou com três deles, dois homens de 93 e 76 anos – que se lembram com detalhes do dia em que Hiroshima entrou tragicamente para a história – e com uma mulher, de 74 anos, que descobriu tardiamente que também é uma sobrevivente.
O soldado
Quando contava com 21 anos Takashi Morita, atualmente com 93 primaveras, marchava com seu pelotão, estando ele na frente de seus homens. Ele era membro de uma força de elite do exército imperial semelhante à Força Nacional de Segurança brasileira. O dia era 6 de agosto de 1945.
Estava ensolarado por volta das 8h15. De repente, ocorre um forte clarão – mesmo com a luz do sol – além de uma sensação de calor pelo corpo. “Estávamos a 1,2 mil metros de onde caiu a bomba, foi muito forte. Fui jogado dez metros para frente (por conta da força da explosão) e me queimei. A cidade de Hiroshima ficou toda quebrada. Meu relógio desapareceu, da mesma forma que meu chapéu”, relembra o senhor com forte sotaque nipônico.
Com a cidade em chamas, e ferido, Morita começou a ajudar as pessoas que sobreviveram e não foram desintegradas pela explosão – como ocorreu com dez homens de seu pelotão, composto por 13. Ele ficou dois dias ajudando as pessoas até que, finalmente, foi para um hospital. Depois de um ano, abriu uma relojoaria, com a qual se sustentou por 11 anos, até que decidiu migrar para o Brasil.
Morita viveu em Tóquio, onde se preparou para ser policial, antes de voltar à Hiroshima. Por isso, seus familiares desconheciam que ele estava na cidade no dia em que os Estados Unidos explodiram a primeira bomba atômica contra pessoas inocentes.
“Isso nunca sai da minha cabeça”
Morita afirmou que não esquece o inferno que viu. Mais de 70 anos após o atentado, ele pensa todos os dias sobre o que testemunhou com olhos, ouvidos e coração após a explosão da bomba. “Isso nunca sai da minha cabeça”, afirmou com os olhos marejados, acrescentando que o cheiro proveniente de corpos, dias depois da explosão, ainda se mantém em sua lembrança.
Quando ajudava outras vítimas da bomba, Morita afirmou que só pensava na paz e na desnecessidade de se fazer guerra. Porém, quando ajudava uma menina, ela pediu para que o então soldado se vingasse dos americanos. Ele nutriu o sentimento durante um tempo, porém aos poucos perdoou os americanos, já que eles não foram os responsáveis diretos pela explosão da bomba. “A culpa de tudo é da guerra”.
Recomeço
Depois do atentado, Morita abriu sua relojoaria. Um belo dia, 11 anos após a bomba, uma cliente entrou na loja do ex-militar e comentou que havia voltado do Brasil. Pelo fato do País ser bem longe do Japão, a colônia nipônica que vivia nas bandas de cá acreditava que a Terra do Sol Nascente havia ganhado a guerra – por isso que a mulher e familiares venderam tudo e haviam voltado à terra natal. “Mas nessa época era muito triste. Não tinha comida, tinha muito ladrão”.
Além de todos os problemas socioeconômicos, Morita também ficou doente por conta da radiação à qual foi exposto. “Me falaram que São Paulo ficava alto do mar, era um lugar com tempo bom. Aí pensei, melhor ir para o Brasil, para São Paulo”.
O sobrevivente vendeu sua loja e comprou passagens para a mulher, dois filhos e, claro, para si. Ficaram 42 dias em um navio, até chegar a Santos – onde desembarcaram sem saber uma única palavra em português, idioma em que ainda “tropeça”.
Em 1984, fundou a Associação das Vítimas de Bomba Atômica no Brasil, localizada na Avenida Jabaquara, 1744, Saúde. Segundo a entidade, vivem atualmente no Brasil 94 sobreviventes da bomba de Hiroshima.
Salvo pelo pai
Kunihiro Bonkohara, atualmente com 76 anos, nasceu na província de Shizuoka, abaixo do monte Fuji. Aos cinco anos, mudou-se com a família para Hiroshima. Morava com os pais, sendo o caçula de três irmãos. No dia da bomba a irmã estava no colégio e a mãe no trabalho, justamente no ponto onde caiu a bomba, jogada pelo o bombardeiro B-29, conhecido como “Enola Gay”. A ogiva explodiu a 570 metros do solo, formando uma gigantesca bola de fogo, em formato de cogumelo, com uma temperatura de 300 mil graus centígrados. “Minha mãe queria me levar com ela, mas meu pai não deixou”. O irmão mais velho do sobrevivente estava em outra cidade. Bonkohara não falou mais sobre o irmão depois disso.
Antes da bomba ser lançada, Bonkohara foi levado pelo pai ao escritório onde este trabalhava. O sobrevivente se lembra de uma grande mesa no centro do cômodo onde estavam. “De repente, ficou tudo muito claro. Meu pai me pegou, me colocou sob a mesa e depois se agachou em cima de mim”, diz ao se recordar do clarão que todos os sobreviventes da bomba relatam.
Após a explosão, o telhado e janelas foram arrancados e tudo caiu sobre a mesa em que pai e filho se protegiam. Outras duas pessoas também estavam no escritório no momento em que a bomba nuclear foi jogada na cidade. “Meu pai ficou com as costas sangrando, eu também sangrei e as outras duas pessoas”. Na rua, muita gente corria e gritava.
O dia que virou noite
Com a cidade em chamas, que projetavam nuvens de fumaça negra ao céu, o pai de Bonkohara correu até a casa da família, que estava completamente destruída.
O dia que começou ensolarado, agora estava escuro por causa da fumaça tóxica. Começou uma chuva nuclear. “Eu estava com uma camisa branca e fiquei todo manchado de preto”. A bomba caiu a dois quilômetros de onde estavam Bonkohara e seu pai.
O pequeno Bonkohara presenciou pessoas correndo com os braços dobrados para evitar que a pele, desgrudada do corpo, caísse. “Os rostos estavam vermelhos e pretos. Roupa quase não tinha, estava tudo queimado, pendurado. Gritavam: ‘quero água, quero água’. Deve ser porque o corpo delas devia estar muito quente”. Durante todo o dia, pessoas fugiam para outras cidades.
De noite a mãe e irmã não voltaram para casa. No dia seguinte, foram ao centro para procurá-las. Bonkohara acordou cedo e, ao olhar para a cidade, ainda avistou fumaça. “Não existiam mais casas, somente prédios”.
Já no centro de Hiroshima, se lembra de um bonde queimado cheio de corpos carbonizados. Caminhando mais, perto do ponto onde a bomba caiu, precisaram se afastar de mais cadáveres. O sobrevivente resolveu então ir à ponte de Aioi, que passa sobre o rio de Ota. A construção foi usada como referência pelos norte-americanos para jogar a bomba. “Quando subi na ponte, e olhei para baixo, vi muitos corpos amontoados nas duas margens do rio”, afirmou com a voz embargada.
Mudando de ares
Antes de saírem da cidade, Bonkohara se lembra de ter visto soldados jogando gasolina sobre corpos e ateando fogo. “O cheiro na cidade estava começando a ficar insuportável (por conta dos cadáveres que começavam a apodrecer)”. A mãe e irmã dele nunca mais foram vistas e, certamente, acabaram tendo o mesmo destino dos corpos que cobriam o chão de Hiroshima. Depois de 14 de agosto, a guerra terminou – com o Japão vencido.
Dias após o atentado, o corpo de Bonkohara começou a soltar pus. Ficou doente no decorrer da adolescência – contraindo tuberculose. Aos 18 anos, foi diagnosticado com problemas cardíacos. Ele sempre se sentia mal e refletiu que, da forma em que estava sua saúde, não iria passar dos 30 anos. “Aí pensei em conhecer outro país. Pesquisei onde ir. Mas minha única chance era a imigração. Migrei então em 1961, aos 20 anos, sozinho para o Brasil”.
Bonkohara chegou ao País pelo norte do Paraná, perto de Umuarama, num local com mata virgem ainda. Conseguiu um emprego em uma fazenda para derrubar mata e abrir áreas para plantar algodão e milho. Ficou dois anos na lavoura. “Meu corpo melhorou muito, mas ainda me sentia mal, desmaiava”. Depois disso, foi para São Paulo, onde vive até a atualidade.
O sobrevivente critica a utilização de usinas nucleares pelo mundo – fala do acidente de Chernobyl (cidade da Ucrânia onde, em 26 de abril de 1986, ocorreu um acidente catastrófico em uma usina nuclear) e Fukushima (cidade japonesa que, em 11 de março de 2011, também vivenciou situação semelhante à da cidade ucraniana). “Essa radiação fica pelo ar. Usinas produzem lixo atômico, acumulado todo dia, por qual razão?”, interrogou com indignação e olhar triste concluindo, após um breve silêncio, que “a culpada disso tudo é a guerra e as pessoas precisam saber disso”.
Sobrevivente “tardia”
Quando a bomba atômica foi jogada em Hiroshima, Junko Watanabe contava com apenas dois anos. Portanto ela, que atualmente está com 74, não se lembra de nada do que aconteceu. Descobriu que era uma sobrevivente do atentado estadunidense anos depois e, por isso, foi atrás do assunto. Omitiram dela que havia sobrevivido para que não fosse vítima de preconceitos provenientes do receio à radiação.
Chegou ao Brasil em 1967 para se casar. O matrimônio foi arranjado por carta, algo comum à época em que ela morava no Japão. Depois de 13 anos nas bandas daqui, retornou à Terra do Sol Nascente, onde lhe foi revelado pelo pai que havia sido sobrevivente da bomba atômica. Graças a isso, soube que no dia 6 de agosto de 1945 morava a 18 quilômetros do ponto onde explodiu a bomba de Hiroshima– a segunda vez que uma atrocidade dessas ocorreu foi em Nagazaki, três dias depois. Estima-se que 40 mil pessoas morreram na ocasião.
O dia da bomba
Ela brincava com outras crianças em frente à casa dos pais, sob o olhar atendo da mãe. “De repente, os papéis começaram a queimar enquanto ‘voavam’. Por isso, minha mãe foi correndo me buscar”, disse acrescentando que, na sequência, começou a cair a “chuva negra”, que atingiu o corpo de Junko quando criança.
O contato com a radiação fez com que a pequena sobrevivente não conseguisse comer, além de ficar com uma forte diarreia. “Meus pais pensaram que eu ia morrer”. Ela superou os sintomas radioativos, não tendo nenhuma sequela desde então.
Apesar do relato dos pais sobre a bomba, Junko aprofundou seu conhecimento sobre o assunto após se tornar membro da Associação dos Sobreviventes de Hiroshima, onde encontrou relatos escritos por sobreviventes. “Quando comecei a ler, meu coração bateu muito forte, fiquei arrepiada, comecei a tremer e isso não parava”, disse com a voz embargada.
Depois de encontrar os relatos, ela não conseguia conter as lágrimas e nem parar de ler. Um mês depois, assistiu a um documentário sobre a bomba de Hiroshima. “As pessoas ficaram carbonizadas. A temperatura (no ponto onde a ogiva caiu) ficou a 300 mil graus centigrados. Essa imagem não sai da minha frente. Senti muito o que foi. O dia estava bom e, de repente, ficou escuro”, afirmou.
Uma cena não testemunhada, mas que habita Junko após assistir documentários sobre o atentado, é a de uma criança que balbucia, “muda”, a palavra “mãe”. “A criança mexe a boca pedindo ajuda, mas, não sai nenhum som. O ser humano deixou Hiroshima mal. Isso não é certo, a guerra”.
“A culpa é da guerra”
Apesar de não se lembrar do dia em que a bomba caiu, Junko foi exposta à radiação. Por isso, se preocupa com o futuro de seus descendentes. “Não me lembro, mas a chuva negra caiu em mim”.
Junko conta a história de uma criança que, como ela, tinha dois anos e era da vizinhança do bairro de Hiroshima onde moravam. A garota também ficou exposta à chuva negra. Porém, quando completou 13 anos foi diagnosticada com câncer. Ela morreu com uma metástase generalizada, segundo relatou Junko reiterando sua preocupação com as futuras gerações de sua família. “A culpa (de minhas preocupações) não são minhas, são da guerra”.
Projeto Paz em Cena
O relato dos três sobreviventes compõe os espetáculos do projeto Paz em Cena. A ideia surgiu em 2013, por conta de um grupo de teatro que o ator Rogério Nagai integrava. Durante dois anos, pesquisaram sobre toda a temática da migração japonesa para o Brasil. “O que interessava para a gente era o ‘lado B da imigração’. Desde que o navio (Kasato Naru) deixou (em 1908) os primeiros japoneses aqui até a época atual”, disse Nagai.
Por isso descobriram várias histórias sobre a chegada e permanência dos japoneses no País. Precisaram selecionar 10 entre várias temáticas distribuídas entre o grupo. A de Rogério é Hiroshima. “Eu nem sabia (na ocasião) que havia sobreviventes de Hiroshima no Brasil, ou se ainda havia algum sobrevivente. Aí, em 2012, conheci a associação (do Morita)”. Desde então, após um ano de conversas e quatro meses de ensaio, surgiu o espetáculo “Três sobreviventes de Hiroshima”.
Além do espetáculo dos três sobreviventes, o Paz em Cena também conta com os espetáculos Os Pássaros de Sadaki, Gandhi e Dois Idiotas Sentados Cada Qual no Seu Barril. Todas as encenações ocorrem no Teatro Popular João Caetano, Rua Borges Lagoa, 60, Vila Clementino. Mais informações e compra de ingressos antecipados no link https://www.sympla.com.br/mostrapazemcena__158410