“Sobrevivemos”
14/01/2015
8:06 PM
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Paulo Manso e Alexandre de Paulo / Fotos: Alexandre de Paulo
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Atualizado em 15/01/2015 10:27 am
Característica marcante dos haitianos, o sorriso fácil supera até mesmo as precárias condições de vida no país. Só um assunto parece ser capaz de tirar a alegria do rosto dessa gente: o terrível terremoto de 2010.
A Folha Metropolitana falou com sobreviventes daquela tragédia.
Major Marcelo Fauri
O Major Fauri está no Haiti pela segunda vez. Durante a primeira passagem, em 2010, fazia exercício com outro militar quando o terremoto sacudiu o país. “Eu estava correndo com um colega. No exato momento do abalo, ele segurou meu braço por não conseguir fazer a curva. Achou que estava sofrendo um infarto”, disse. Em frações de segundos, o colega de Fauri percebeu que não era um problema de saúde. “Ele achou que fosse um atentado a bomba, por conta do deslocamento de ar. Nós, brasileiros desacostumados a presenciar um terremoto, demoramos a perceber do que se tratava.”
Como estavam em área aberta, não sofreram ferimentos. “Enquanto aguardávamos o fim do tremor, ficamos impressionados. O chão parecia um mar revolto”, explicou. Na base, alguns cozinheiros se machucaram. Com a informação de que a então base central da Minustah em Porto Príncipe – o Hotel Cristopher – havia sido atingido, Fauri partiu para as operações de resgate. “No caminho vi muita aflição, desespero, gente mutilada pedindo socorro, muitos corpos dilacerados. E muitos sobreviventes embalando os mortos em lençóis brancos e deixando enfileirados no meio das ruas”, lembrou.
Hussein Auguste
O garoto de 15 anos estava vestido com a camisa da Seleção Brasileira. Disse que sonha em ser jogador de futebol. “Quero ser alguém na vida”, vaticina. Perdeu os pais no terremoto de 2010. “Eu estava na rua jogando bola. Por isso sobrevivi. Quando a terra parou de tremer eu vi que minha casa tinha caído. E vi meus pais mortos.”
Hussein não sabe dizer quem é sua família. “Tenho muitos irmãos, mas não conheço todos. Eu moro perto de um campo de futebol. Quando venho aqui perto [da Base General Bacellar] fico na casa de um amigo. Às vezes tem o que comer. Às vezes não”, disse.
Ao ser perguntado sobre quem cuidava dele, pois estava limpo e bem vestido, demonstrou vergonha de sua realidade. “Eu ficar bonitão pra ninguém saber se eu não tem mãe, não tem pai. É pra ninguém saber do meu problema [sic].”
Pierre Lajoir
Aos 63 anos, Pierre Lajoir aparenta ser mais jovem. Magro pela falta de comida à mesa, ele é forte. Estava sentado na frente de seu barraco na favela de Ti Haiti, em Cité Soleil, quando um par de muletas chamou minha atenção.
Aproximei-me e percebi que ele não tinha a perna esquerda. Perguntei se o problema tinha relação com o terremoto. “Oui”, respondeu positivamente, sem demonstrar muita vontade de conversar. Sisudo, disse que estava trabalhando no centro de Porto Príncipe no dia do abalo. “Uma parede caiu sobre a minha perna, que ficou dilacerada e precisou ser cortada no hospital.” Pierre viu um vizinho morrer ao seu lado naquele dia.
Max Lensky – Augustinho
Max Lensky gosta de ser chamado de Augustinho, talvez para homenagear os brasileiros de quem tanto gosta. “Um dia vou para o Brasil”, disse em uma das patrulhas que fizemos com o intérprete. Mas Augustinho não gosta de falar sobre o terremoto, assim como seus conterrâneos. Ele tem motivos. Perdeu a irmã mais nova durante o desastre.
“Eu sobrevivi porque estava trabalhando naquele dia. Deixei algum dinheiro para minha irmã comprar doces antes de ir à escola, mas ela não passou bem e voltou para casa”, explicou. “Quando o terremoto começou, minha mãe e meus outros irmãos correram para fora de casa. Ela ficou para trás porque estava na cama. Faltou pouco para conseguir. Foi atingida pela laje quando estava na porta”, lamentou. “Faltou um segundo para ela ficar viva.”
Joseph Luckner
Ele caminha rápido pelos corredores da base militar. Chama os oficiais pela patente por respeito, mas demonstra intimidade. Afinal, Joseph Luckner trabalha como intérprete na Minustah desde que a ONU interveio no Haiti. “Estou aqui desde o início”, diz, sem esconder o ar de marrento. Mas Luckner também não resiste ao assunto terremoto e baixa a guarda. “É um assunto que incomoda a todos nós”, admite.
Era ele o guia que acompanhava a brasileira Zilda Arns no dia fatídico. “Ela dava uma palestra a outros religiosos sobre a fabricação de soro caseiro. Momentos antes do abalo eu cheguei a avisá-la sobre o horário, já que ela tinha outro compromisso”, disse. Mas o terremoto chegou antes. Luckner também chegou a ficar soterrado, mas foi resgatado com ferimentos leves. Zilda Arns morreu naquele dia.
Pastora Clemence
Ela era uma simples membro da Igreja de Deus Pentecostal, em Bel Air, em janeiro de 2010. Naquele dia 12, Clemence estudava espanhol dentro do templo quando precisou interromper a aula para buscar a filha na escola. “Por isso sobrevivi”, disse.
O pastor da época até tentou fugir durante o tremor, mas foi atingido na cabeça por um pedaço da parede da igreja e morreu poucos minutos depois. “Desde então eu assumi o rebanho e tento reerguer a igreja”, explica a agora pastora Clemence. Um pedaço de parede pintada de verde foi o que restou do antigo templo, fotografado por Alexandre em dezembro de 2005.