Connect with us

Uncategorized

Ultimas



notíciasUltimas


Onde deságua toda a imundície, crianças brincam com porcos


13/01/2015
7:11 PM
/
Paulo Manso / Fotos: Alexandre de Paulo
/
Atualizado em 14/01/2015 11:04 am

Cité Soleil foi a última comuna (o que equivale a um bairro nas cidades brasileiras) a ser conquistada pela Minustah, liderada pelas Forças Armadas do Brasil. Do início da missão de paz, em 2004, foram três anos até suprimir as gangues fortemente armadas que digladiavam pelas ruas em guerra civil.

Ainda é a região mais violenta do Haiti – metade dos assassinatos registrados no país acontece em Cité Soleil. “Hoje vemos a violência típica de lugares muito pobres. Crimes passionais, discussões terminadas em golpes de faca, estupros e violência contra a mulher. Delitos combatidos a nível policial. Nada comparado à guerra de grupos armados do início da missão”, afirmou o capitão Leonardo Sampaio, comandante da base local.

Há tempos que o Exército deixou de combater esse tipo de ocorrência no Haiti. “Estamos no terceiro nível de repressão. Antes de nós, a Polícia Nacional Haitiana atua. Depois, a Polícia da ONU. Apenas em casos extremos, em que as duas instâncias não resolvem, é que nós intervimos”, disse.

No dia anterior à nossa visita, um conflito ocorreu em Cité Soleil. Capitão Sampaio explicou que a briga ocorre entre a parte alta da comuna (Boston) e a parte baixa (Brooklin) pelo domínio de território para extorsão dos motoristas de tap taps. Quanto maior for o território dominado, mais tap taps circulando e mais “pedágio” para o caixa das gangues.

A região não é grande, tem aproximadamente 7 mil m2, mas é muito movimentada. Seus 365 mil habitantes compõem um cenário degradante vendendo de tudo em meio à sujeira e ao esgoto, que corre a céu aberto. Até combustível é comercializado, em tonéis e sem a menor preocupação com a segurança. Água para consumo, algo raro no Haiti, é vendida por ambulantes por 30 gourdes (aproximadamente R$ 1,70 a lata). Saquinhos menores são comprados por 5 gourdes nas ruas (três saem por R$ 0,28).

Terra no cardápio

Paulo Manso – Antes de voltarmos à base, e quando era inimaginável presenciar algo mais chocante do que as condições de vida em Ti Haiti, passamos em uma fábrica de biscoitos. Foi assim que os oficiais nos venderam a pauta. A “fábrica”, na verdade, era o chão de uma das vielas da favela. Sob uma rara árvore (sem energia, o Haiti sofre constante desmatamento para a fabricação de carvão), três mulheres compunham a linha de produção. Uma delas trabalhava com um bebê no colo. Outra criança, com idade não superior a 3 anos, enxergava com dificuldade e tinha a boca suja de barro. Havia acabado de se alimentar…

Os biscoitos fabricados ali são feitos com água (poluída), manteiga e terra. Atrás das mulheres, centenas deles secavam sob o escaldante sol caribenho. A poucos metros, uma quadra esportiva abandonada tinha o piso repleto de outros biscoitos de barro a espera do ponto ideal para a venda ou consumo.

Há quem diga que no extremo da fome, a terra possui alguns nutrientes capazes de manter o ser humano vivo. Não há comprovação para a afirmação, mas o fato de presenciar pessoas comendo e vendendo biscoitos de barro dá a noção exata do nível de miséria em que se encontra a maioria dos haitianos.

 

Remissões à ligação entre haitianos e brasileiros podem ser encontradas em todo canto. Acima, na região portuária de Cité Soleil, um tanque tem as cores do Brasil e pichações sobre a Copa do Mundo

 

‘Pequeno Haiti’ é a maior favela do país

Criado no fim da década de 1950 pelo ditador Papa Doc para ser um bairro industrial, Cité Soleil viu sua população crescer na busca pelo emprego, ficar sem qualquer estrutura após a fuga das empresas durante o turbulento governo de Baby Doc, e virar um quartel-general do crime.

O bairro fica na beira do mar e contribui incisivamente para a poluição da Baía de Porto Príncipe. Por sua localização, e por ser um país sem saneamento básico, toda a imundície produzida nas serras do Haiti desaguam em Cité Soleil, a região mais pobre da pátria mais pobre das Américas.

Jovens impecavelmente uniformizados a caminho das escolas contrastavam com a devastação do local. Ruas estreitas entremeadas por canais de esgoto e água suja. Foi fácil flagrar pessoas buscando essa água com baldes. O cheiro era forte e ruim. Algumas edificações tinham marcas de tiros, resquícios da violência.

A alguns metros, o extremo da pobreza. Em Ti Haiti (Pequeno Haiti, em creoule), a maior favela do país, os barracos não têm apenas o telhado de zinco, mas as paredes também. Isso e o medo de novos tremores de terra explicam o fato de muitos haitianos permanecerem o tempo todo do lado de fora de suas “residências”.

Foi impossível caminhar pelas vielas de terra e não pisar nas fezes de animais e de seres humanos. Montanhas de lixo entupiam grandes canais que deveriam escoar a água para o mar. Até o lixo é pobre. Só quem aproveita são os porcos. Aos montes, eles circulam entre as crianças chafurdando naquela podridão.

Crianças curiosas apareciam de todos os cantos. Algumas nuas, outras apenas com uma camiseta velha. Todas descalças, não ligavam para o chão molhado com esgoto. Um grupo jogava futebol em uma viela. Outro tentava entender o que Alexandre de Paulo fazia com duas máquinas fotográficas nas mãos.

Foi impossível, também, conter as lágrimas ao ouvir tantos pedidos. Dinheiro? Não! Pedem “dlo” (água, em creoule). E pedem para que os tirem de lá. Um garotinho, aparentando 7 ou 8 anos, cutucava meu braço. “Você meu papá [sic]. Me leva pra Brasil”, pedia. Como não me lembrar de meu filho, de 2 anos, cercado de cuidados em casa? Como não sentir nojo de tamanha desigualdade?

O pequeno Michelson Pierre, de 11 anos, soltou um “I’m fine” (Eu estou bem, em inglês), talvez para chamar minha atenção. Na verdade, nada vai bem. “Não sei o que é pior aqui. Mas acredito em Deus e quero viver bem no futuro”, desabafou quando eu perguntei sobre sua maior dificuldade em Ti Haiti.

Davidson Charles, de 18, identificou com clareza o que mais o incomoda ali. “Falta educação e saúde. Quando chove, todo esse lixo que você está vendo invade nossas casas. Quem fica doente acaba morrendo, sem atendimento”, disse. “Não temos segurança aqui”, reclamou Semealnil Wungly, 17. Ele vive com mais cinco pessoas em um pequeno barraco. Ninguém trabalha. “Só minha mãe tenta vender algo. Se ela consegue, a gente come”, disse, antes de completar com um “não” seco e de desnecessária tradução à minha indagação sobre a sua esperança de um futuro melhor.

Previous Image

Next Image

info heading

info content




 



Continue Reading
To Top